Há um tempo eu tive contato com uma teoria social que achei interessante e quando
aproximei esse pensamento do contexto de uma pessoa com deficiência, percebi ter um
tema irresistível e acho que pouco comentado. Você já se perguntou se você é uma
pessoa desacreditada? Ou será que você é desacreditável?
"Que no futuro os desacreditados sejam apontados apenas por uma questão de caráter."
Goffman comenta que todo sujeito tem duas identidades: a sua identidade social real e a
sua identidade virtual. A identidade social real é a que interage com outras pessoas e, na
maioria das vezes, vai conduzir a maneira como a sociedade responde ao indivíduo. É o
que todo mundo percebe do outro e com isso, forma um conceito sobre um amigo, um
chefe, um colega de trabalho e por ai vai.
A identidade virtual está em nós também, mas em uma atmosfera não concreta. Nela
encontramos todas as impressões que os outros formam, ou têm, de nós mesmos, que
pode se manifestar depois que alguém nos conhece, ou mesmo antes, tendo suas bases
naquilo que esperam da gente. É a identidade desenhada por outra cabeça e o
interessante sobre a identidade virtual é que ela tem a nossa influência também. Ela
guarda tudo aquilo que nós não queremos que os outros saibam sobre nós.
De acordo com Erving Goffman o que separa os desacreditados dos desacreditáveis é o
quanto da nossa identidade virtual se manifesta na nossa identidade real, ou a diferença
entre o que se espera e aquilo que você mostra. Se a sua identidade virtual apresenta
características que levam a formação de conceitos negativos, nem sempre justos, e ela
está próxima da sua identidade real, então você caminha para a turma dos
desacreditados. Se você mantém esses dois lados em um relativo equilíbrio, você é um
desacreditável.
Ainda de acordo com o autor, os desacreditados têm essa dinâmica particular entre as
duas identidades e ao entrarem para esse grupo, tornam-se estigmatizados.
Por que um tema aparentemente complexo abre espaço para uma discussão irresistível?
Porque acredito que a sociedade sempre precisou ter o seu grupo de desacreditados. E
eu acho que sempre vai precisar ter.
Só que o grupo dos desacreditados não é sempre o mesmo e isso acontece porque a
identidade virtual é mutante. Durante o século XX, tivemos diferentes estigmas que
formaram o grupo dos desacreditados. Mulheres, negros e homossexuais são três grupos
que provocaram mudanças muito positivas nas dinâmicas sociais e conseguiram bater
de frente com uma série de preconceitos e até hoje brigam para não serem mais
estigmatizados.
E quem será que é o desacreditado da vez? Há quem diz que são os fumantes e pessoas
acima do peso. Volta e meia eu ouço histórias de discriminação explícita em relação a
esses dois grupos. Hoje o cigarro e o sobrepeso representam escolhas negativas no
inconsciente social, dizendo de cara que quem fuma, ou quem é gordo fez escolhas
terríveis e não merece muito crédito. Algum fumante, ou obeso gostaria de se
manifestar?
Mas por que será que a dinâmica social retoma esse tipo de mecanismo, mudando o
grupo que sofre opressão, mas sempre precisando oprimir alguém? É algum tipo de
defesa contra o que não é desejado naquele contexto? Pode ser que em determinadas
décadas quem não era negro, nem mulher e nem homossexual realmente não gostaria de
o ser e desprezava quem era.
A pessoa com deficiência está no grupo dos desacreditados, pelo conjunto de
características da identidade virtual que ela carrega. E se a opressão é um mecanismo de
defesa contra o que a sociedade não quer, o deficiente está numa situação bastante
complexa. A deficiência não é desejada por quem não tem e também é rejeitada por
quem a tem.
Como tirar o deficiente desse grupo? Deixando que ele mostre o seu potencial? Dando
oportunidades iguais? Tratando-o como uma pessoa sem deficiência? Também, mas não
só isso. É necessário enxergar a deficiência como uma possibilidade. Algo que pode
acontecer com absolutamente qualquer um.
Talvez precisaremos de algumas gerações para que isso aconteça, porque preparo a
coisas que queremos longe ainda não é o nosso forte. Não nos preparamos nem para a 3ª
idade (outro grupo desacreditado) e muito menos para a morte. O que é uma pena,
porque podemos nos preparar para essas coisas todas com muita serenidade e
experiências positivas. Podemos nos preparar para a velhice com saúde e economia.
Podemos nos preparar para a morte com legado e espiritualidade. Podemos nos preparar
para a deficiência com união e respeito.
Que no futuro os desacreditados sejam apontados apenas por uma questão de caráter. E
que desacreditáveis continuamos a ser todos nós.
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